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A guerra pela infraestrutura da música: independência, poder e o risco de um mercado sem escolha
novembro 24, 2025

Uma das principais disputas do mercado musical global hoje gira em torno da proposta de aquisição da Downtown Music Holdings pela Universal Music Group (UMG), avaliada em cerca de 775 milhões de dólares. A operação, conduzida pela Virgin Music Group, acendeu alertas em todo o ecossistema musical independente e levou a Comissão Europeia a abrir uma investigação antitruste aprofundada. O órgão busca avaliar se a transação pode reduzir a concorrência e afetar negativamente artistas, selos e consumidores. A Downtown opera plataformas essenciais para o funcionamento do setor independente, entre elas FUGA e CD Baby, que cuidam da distribuição digital, além da Curve, especializada em contabilidade de royalties, e da Songtrust, voltada à administração de direitos autorais.
Em um artigo recente publicado no portal Complete Music Update, Nuno Saraiva, fundador do SCL-Lusitanian Label Group, oferece uma perspectiva que dá contornos humanos e ideológicos a esse debate. Ele relata uma situação ocorrida durante a SoAlive Music Conference, em Sófia, na Bulgária, onde um representante de uma grande gravadora comparou as empresas independentes a clubes de futebol amador. A metáfora, aparentemente leve, traduz a maneira como parte da indústria enxerga o futuro do setor independente: apaixonado, mas relegado às margens do jogo principal.
Essa provocação ajuda a compreender o que está por trás da aquisição da Downtown pela Universal. À primeira vista, parece apenas mais um movimento corporativo, mas na prática toca em pontos sensíveis do ecossistema musical. Quem controla a infraestrutura controla o fluxo de música, dados e receita. E quando essa infraestrutura passa para as mãos de quem já detém a maior fatia do mercado, a linha entre competição e dependência começa a se desfazer.
As preocupações das autoridades europeias refletem a dimensão do impacto. A UMG já responde por mais de 40% do mercado de música gravada na Europa. A compra da Downtown daria à empresa acesso a informações comerciais sensíveis de concorrentes e o controle de plataformas essenciais para a sobrevivência de milhares de selos independentes. Entidades do setor europeu, como a IMPALA — associação que representa mais de 6.000 empresas independentes de música em 33 países — reforçaram essa preocupação. Em nota publicada em 19 de novembro de 2025, a organização afirmou ver com “satisfação” o avanço da investigação da Comissão Europeia sobre a aquisição, destacando que a operação deve ser bloqueada para proteger a concorrência e a diversidade cultural.
No mesmo texto, Nuno compartilha sua experiência ao tentar migrar o catálogo de distribuição da FUGA para outro serviço, revelando o quanto o processo foi caro, demorado e tecnicamente complexo, mesmo para um catálogo relativamente pequeno. Essa vivência desmonta a narrativa de que há liberdade plena de escolha no mercado. Cada mudança exige meses de trabalho, custos inesperados e perdas de visibilidade digital.
O risco dessa aquisição não está apenas na operação em si, mas no modelo que ela reforça. Quanto mais concentrada a estrutura, mais fácil manipular as regras do jogo. Um exemplo disso é a política de desmonetização de faixas com menos de mil streams, que retira pequenas receitas de muitos artistas para ampliar o retorno dos poucos que já estão no topo. É uma economia invertida, que drena recursos das bases criativas e alimenta a concentração no topo da cadeia. Isso aprofunda a desigualdade e reduz o espaço de desenvolvimento de novas cenas e novos públicos.
Há ainda o uso da diversidade como argumento de legitimação. Grandes grupos gostam de exibir artistas locais como prova de pluralidade, mas o fluxo real é unidirecional, com música anglo-americana empurrada para os mercados menores. O resultado é um mapa sonoro cada vez mais homogêneo, onde o discurso sobre diversidade encobre a padronização dos repertórios e a limitação das exportações culturais.
A investigação da Comissão Europeia segue em curso e já entrou em sua fase mais detalhada. O processo chegou a ser suspenso temporariamente para que as empresas envolvidas fornecessem informações adicionais, e o novo prazo para decisão foi fixado para fevereiro de 2026. Esse calendário indica que os reguladores reconhecem o risco sistêmico da operação. Caso a fusão seja aprovada, a maior detentora de catálogos musicais do mundo passará também a controlar parte fundamental da infraestrutura usada por seus concorrentes diretos.
O ponto mais sensível talvez seja o da expressão. À medida que a concentração aumenta, cresce também o poder de quem controla a narrativa. As vozes que questionam fusões ou alertam sobre riscos de monopólio são frequentemente desqualificadas como alarmistas, algo que o próprio Nuno relata em seu artigo. Quando o debate público sobre o futuro da música é abafado por quem tem mais poder de comunicação, o campo cultural se torna menos livre e menos democrático.
Tudo isso recoloca a discussão em outro patamar. A música independente não é apenas uma categoria estética nem um nicho de mercado, mas um pilar da diversidade e da sustentabilidade cultural. Se as rotas de distribuição, a contabilidade de royalties e a gestão de direitos passarem a depender de poucos grupos, a independência se tornará apenas uma aparência. E sem independência real, não há diversidade verdadeira.
No final de seu texto, Nuno lembra que a palavra “amador” vem de “amar”. É esse amor, pelo som, pela diferença e pela experimentação, que mantém viva a arte quando o mercado tenta reduzir tudo à eficiência.